Esta frase do entregador do jogo do bicho dita ao dono do boteco estremeceu Fagundes. Sentiu um friozinho, uma doce sensação.
Desde às 13h que estava de plantão no botequim do Ranulfo aguardando o jogo das 14h, o "paratodos" no linguajar dos "corretores zoológicos".
Deu macaco, 66, justamente a dezena que Fagundes havia jogado.
- Só falta ter vindo com o milhar e a centena que usei para complementar o número de quatro dígitos, e aí ganho uma fortuna, pensava Fagundes com as mãos trêmulas de emoção.
Se viesse estaria rico, pois "investiu" o que tinha (R$ 30, miséria pouca é bobagem) e ganharia mais de R$ 40 mil. Preparou-se psicologicamente:
- E aí Ranulfo? Deu macaco em 66?
- É... Bicho manhoso! Como se pode ganhar nesta porcaria com tudo repetido? Veja só, deu tudo seis, 6666!
Fagundes emudeceu. Quase teve um colapso. Não conseguia se mexer, ficou momentaneamente estático, pasmo, mas logo se refez e desandou a gritar e a pular feito... macaco!
Em fração de segundos sua personalidade se transformou. O que era antes um homem cabisbaixo, tenso e calado em razão das vicissitudes da vida, transfigurou-se num sujeito falastrão, com ares de importância jamais imaginada em sua simplória existência.
Pagou rodadas e rodadas de cerveja para as pessoas que iam chegando atraídas por aquele barulho todo. Em questão de minutos uma pequena multidão se aglomerou no boteco.
Fagundes rezava, beijava com ardor o pedaço de papel que significava doravante sua carta de alforria daquela vida miserável.
Agradecia a todos os santos por terem lhe proporcionado aquele sonho da noite anterior, no qual era chamado de besta pelos amigos porque não tomou nenhuma atitude ao surpreender sua mulher com o amante.
Viciado no jogo do bicho e inteligente como julgava ser, Ranulfo não apostou no touro ou no burro, como era de esperar, mas ao invés disso lembrou-se que a Bíblia diz ter a besta o número 666, e, para aproveitar o embalo, acresceu do milhar 6.
- Não deu outra, pensou. - Sou mesmo um sujeito inteligente!
Começou a traçar planos. Iria na Bousquet comprar um carro zerinho, tomaria um banho de loja e depois formaria um estoque de Viagra.
- Quero ver a cara daquela vadia quando me vir ao volante do meu carrão, com tudo em cima, e mais tarado que noivo em véspera de casamento.
Ela vai se arrepender amargamente de ter me trocado por aquele safado do Juca Nastrão, balbuciava com uma fisionomia perversa e vingativa.
Antes de ir ao encontro do "banqueiro" receber sua bolada, Fagundes, num surto de generosidade, resolveu dar R$ 100 a cada conhecido que estava no boteco.
Um deles se prontificou em sacar da poupança de anos a fio uns R$ 3 mil para emprestar ao novo-rico (aquele papel escrito 6666 era uma garantia e tanto!).
Dinheiro distribuído, Fagundes aconselhou o pessoal a arriscar no gato às 18h, já que ele, o sortudo, nascera em 1955, e 55 é o felino. - Você não vai jogar mais? alguém perguntou.
- Hoje não. Estou com pena do bicheiro, escarneceu Fagundes, dirigindo-se ao encontro do dito-cujo. Lá chegando, empertigou-se com ares de importância nunca dantes imaginada, sacou do bolso o papel miraculoso e disparou:
- E aí, macanudo? Preparado para desembolsar pra mais de R$ 40 mil?
Imperturbável, o bicheiro retrucou: - Claro, esse é o jogo mais honesto. Vale o escrito.
- Então, tá aqui. Faça os cálculos.
- Hum..., deixa ver..., hum..., você ganharia R$ 40 mil no milhar, mais R$ 6 mil na centena e R$ 600 na dezena.
- Ganharia, enunciou esse futuro do pretérito com exagerada ênfase, para em seguida disparar a sentença cruel:
- Porque seu jogo correu às 10 e o macaco veio às 14h. Vale o escrito, lembra?
Foi doloroso demais. O terrível equívoco só não redundou em tragédia porque deu o gato às 18h. Em 5555.
Autor: José Henrique Vaillant - Publicado em outubro/1997