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16 de fev. de 2013

Encontro

Amável leitor, graciosa leitora. Mais uma vez Gentil dos Anjos Flores da Purificação vai lhes contar uma historinha.

Espera que gostem, mas que aquela ínfima minoria dos que me honram com sua leitura não impute ao autor a saga da personagem/narradora, estamos entendidos?


Há tempos compus o soneto abaixo, que titulei "Trapaças da sorte", e é talvez por causa dele que começou minha felicidade, ou desdita, depende de como você interprete. Alguém o leu, isto é certo; mais que leu: interpretou com inteligência e sensibilidade, tal como eu desejava!

Na luta pela vida eu tirei partido,/

Do trabalho e forças de vencer, tamanhas,/
Que conquistei lauréis, glórias e façanhas,/
Deixando de joelhos o desânimo, vencido./

Fui audaz, forte, corajoso e destemido,/

Rompi barreiras, cumes e montanhas,/
Senti a dor procaz corroer-me as entranhas,/
Mas não quedei, de mim nenhum gemido./

Só nestas horas em que bate a solidão,/

E em que pese o que eu levo de roldão,/
Ignorando se o bem ou mal me quer./

Penso em Deus com uma única ressalva:/

Não confiscou minha fiel Estrela-Dalva,/
Mas não me deu o amor de uma mulher!/

Certo dia eu atravessava a ponte em direção a Bom Jesus do Norte matutando sobre este soneto, que como psicanalisaria Humbert, Humbert, by Vladimir Nabokov é, sem dúvida, a obra-prima de um louco: rimas áridas, rígidas, sombrias e sem perspectivas. 



Quando chego à Praça Astolpho Lobo a vejo, e num átimo meu coração quer saltar pela boca!

Lindíssima, sentada próxima a um dos quiosques, cabelos longos iguais aos que José de Alencar, ao descrever Iracema, dizia serem mais negros que a asa da graúna (permitam-me citações, preciso delas, como um cego, da bengala), levemente ondulados. 

Batom vermelho-sangue, olhos claros, claríssimos, pele sedosa e alva como a face da manhã, um conjunto de perfeição física que contrastava com a indumentária da cor dos cabelos, não estou certo se uma túnica ou um vestido.

Aproximadamente 30/35 anos, nessa fase da vida em que a aura de mistério das mulheres as tornam mais irresistíveis e envolventes. Olhei-a; olhou-me. Senti-a; sentiu-me. Olhares profundos, dos que perpassam a alma. 


Muito tempo, mais de meia hora, olhos nos olhos, quase sem piscarmos. Viajei; viajou. Adrenalina pura. Limalha e ímã.

Mas como não há bem que sempre dure, desaponto o leitor ou a leitora ávidos por "finalmentes", de preferência cenas tórridas em meio a lençóis de seda. 


Recomponha essa cara de tarado/a! Dê-se ao respeito! Um vácuo na memória é o que restou a partir daí, só readquirindo estabilidade em São José do Calçado, onde me encontrava noutra ocasião. 

E lá estava ela! Na praça. No banco. Em frente à igreja de São José. Olhou-me de soslaio, sabedora com antecipação de que ali estaria eu, extasiado, hipnotizado. Aproximei-me...

Que diabo de vácuo! Acabo perdendo leitores... Não! Por favor, não pare de ler. Tenha confiança no relator desta história, como disse certa feita Machado de Assis, em Esaú e Jacó.


Agora estamos em Apiacá, eu e ela, ela e eu. Adivinhem onde? Acertaram. 


E desta vez me lembro direitinho, inclusive da autoadmiração em perceber a ausência da minha timidez velha de guerra, daquela que fazia Pablo Neruda (e eu também) passar ao largo, distanciando-se das moças, fingindo um desinteresse que estava longe de sentir, num excessivo acanhamento, num ensimesmamento prolongado que levam a um sofrimento inseparável, pois que a timidez, ainda segundo o genial poeta, é uma condição estranha da alma, uma categoria e uma dimensão que se abre para a solidão.

Mas eu dizia: falei com ela. Confiante, garboso, sentindo o germe da grandiloquência há anos e anos represado:


- Bela manhã...
- Sim, respondeu com uma voz doce, terna, serena.
- Não já nos vimos em Bom Jesus, em...
- Psst, cortou ela. - Não fale..., ordenou, como se começasse a entoar uma melodia maviosa, baixinho como cantigas de ninar.
- Mas...
- Psst. - Apenas sinta este momento.
- Tá..., claro, claro, balbuciei.

E ficamos nos olhando, admirando-nos mutuamente, onde cada centímetro de nossos corpos eram perscrutados com a lupa de um arqueólogo que acaba de descobrir o mais fenomenal sítio arqueológico, com o frenesi dilacerante que impede seus dedos tocarem as raridades. 


Algum tempo depois, ela quebrou o encanto:

- Serei tua. Pra todo o sempre. Prometo. De uma forma mágica, numa dimensão tão fantástica como requer nosso merecimento.


- Mas..., qual é o seu nome, onde mora, por que... - uma cascata de perguntas ameaçava vir de minha mente aos borbotões, não tivesse ela ordenado outra vez:


- Tudo a seu tempo. Você terá todas as respostas, não se preocupe. Agora, faça o favor, vá. Eu o encontrarei em breve.


Um gesto tão carinhoso quanto vigoroso que ela fez  impediu-me de a tocar. Ainda fiquei ali contemplando-a, com o peito transbordante daquele amor platônico avassalador, gemendo no íntimo por ter de separar-me daquela mulher que se transformou como num passe de mágica em tudo o que para mim era mais sagrado, mais bonito, mais enternecedor desde os meus filhos.


Afastei-me relutantemente. Segui em direção à prefeitura de Apiacá quando comecei a ouvir um burburinho aflitivo. 


O conjunto de sons denotava ar grave, choros se misturavam a barulhos de passos apressados, ordens eram dadas, objetos removidos e manipulados freneticamente.

Mas os sons foram se apagando gradualmente e depois que se foram de vez, uma aura de bem-estar completa, total, se apoderou de mim.

E aqui estou, leitor, leitora, tendo suprimido, corado de vergonha, a ressalva a Deus no poema. 


Estou com ela, claro, fiel cumpridora de promessas! Seu nome? Perpétua das Graças Anunciação. 

Aliás, nossos nomes têm tudo a ver com este lugar maravilhoso, divinal, onde receberemos vocês um dia, com alegria e carinho.

Tudo a seu tempo!

Autor: José Henrique Vaillant - Publicado em novembro/2006