Espera que gostem, mas que aquela ínfima minoria dos que me honram com sua leitura não impute ao autor a saga da personagem/narradora, estamos entendidos?
Há tempos compus o soneto abaixo, que titulei "Trapaças da sorte", e é talvez por causa dele que começou minha felicidade, ou desdita, depende de como você interprete. Alguém o leu, isto é certo; mais que leu: interpretou com inteligência e sensibilidade, tal como eu desejava!
Na luta pela vida eu tirei partido,/
Do trabalho e forças de vencer, tamanhas,/
Que conquistei lauréis, glórias e façanhas,/
Deixando de joelhos o desânimo, vencido./
Fui audaz, forte, corajoso e destemido,/
Rompi barreiras, cumes e montanhas,/
Senti a dor procaz corroer-me as entranhas,/
Mas não quedei, de mim nenhum gemido./
Só nestas horas em que bate a solidão,/
E em que pese o que eu levo de roldão,/
Ignorando se o bem ou mal me quer./
Penso em Deus com uma única ressalva:/
Não confiscou minha fiel Estrela-Dalva,/
Mas não me deu o amor de uma mulher!/
Certo dia eu atravessava a ponte em direção a Bom Jesus do Norte matutando sobre este soneto, que como psicanalisaria Humbert, Humbert, by Vladimir Nabokov é, sem dúvida, a obra-prima de um louco: rimas áridas, rígidas, sombrias e sem perspectivas.
Lindíssima, sentada próxima a um dos quiosques, cabelos longos iguais aos que José de Alencar, ao descrever Iracema, dizia serem mais negros que a asa da graúna (permitam-me citações, preciso delas, como um cego, da bengala), levemente ondulados.
Batom vermelho-sangue, olhos claros, claríssimos, pele sedosa e alva como a face da manhã, um conjunto de perfeição física que contrastava com a indumentária da cor dos cabelos, não estou certo se uma túnica ou um vestido.
Aproximadamente 30/35 anos, nessa fase da vida em que a aura de mistério das mulheres as tornam mais irresistíveis e envolventes. Olhei-a; olhou-me. Senti-a; sentiu-me. Olhares profundos, dos que perpassam a alma.
Muito tempo, mais de meia hora, olhos nos olhos, quase sem piscarmos. Viajei; viajou. Adrenalina pura. Limalha e ímã.
Mas como não há bem que sempre dure, desaponto o leitor ou a leitora ávidos por "finalmentes", de preferência cenas tórridas em meio a lençóis de seda.
Recomponha essa cara de tarado/a! Dê-se ao respeito! Um vácuo na memória é o que restou a partir daí, só readquirindo estabilidade em São José do Calçado, onde me encontrava noutra ocasião.
E lá estava ela! Na praça. No banco. Em frente à igreja de São José. Olhou-me de soslaio, sabedora com antecipação de que ali estaria eu, extasiado, hipnotizado. Aproximei-me...
Que diabo de vácuo! Acabo perdendo leitores... Não! Por favor, não pare de ler. Tenha confiança no relator desta história, como disse certa feita Machado de Assis, em Esaú e Jacó.
Agora estamos em Apiacá, eu e ela, ela e eu. Adivinhem onde? Acertaram.
E desta vez me lembro direitinho, inclusive da autoadmiração em perceber a ausência da minha timidez velha de guerra, daquela que fazia Pablo Neruda (e eu também) passar ao largo, distanciando-se das moças, fingindo um desinteresse que estava longe de sentir, num excessivo acanhamento, num ensimesmamento prolongado que levam a um sofrimento inseparável, pois que a timidez, ainda segundo o genial poeta, é uma condição estranha da alma, uma categoria e uma dimensão que se abre para a solidão.
Mas eu dizia: falei com ela. Confiante, garboso, sentindo o germe da grandiloquência há anos e anos represado:
- Bela manhã...
- Sim, respondeu com uma voz doce, terna, serena.
- Não já nos vimos em Bom Jesus, em...
- Psst, cortou ela. - Não fale..., ordenou, como se começasse a entoar uma melodia maviosa, baixinho como cantigas de ninar.
- Mas...
- Psst. - Apenas sinta este momento.
- Tá..., claro, claro, balbuciei.
E ficamos nos olhando, admirando-nos mutuamente, onde cada centímetro de nossos corpos eram perscrutados com a lupa de um arqueólogo que acaba de descobrir o mais fenomenal sítio arqueológico, com o frenesi dilacerante que impede seus dedos tocarem as raridades.
Algum tempo depois, ela quebrou o encanto:
- Serei tua. Pra todo o sempre. Prometo. De uma forma mágica, numa dimensão tão fantástica como requer nosso merecimento.
- Mas..., qual é o seu nome, onde mora, por que... - uma cascata de perguntas ameaçava vir de minha mente aos borbotões, não tivesse ela ordenado outra vez:
- Tudo a seu tempo. Você terá todas as respostas, não se preocupe. Agora, faça o favor, vá. Eu o encontrarei em breve.
Um gesto tão carinhoso quanto vigoroso que ela fez impediu-me de a tocar. Ainda fiquei ali contemplando-a, com o peito transbordante daquele amor platônico avassalador, gemendo no íntimo por ter de separar-me daquela mulher que se transformou como num passe de mágica em tudo o que para mim era mais sagrado, mais bonito, mais enternecedor desde os meus filhos.
Afastei-me relutantemente. Segui em direção à prefeitura de Apiacá quando comecei a ouvir um burburinho aflitivo.
O conjunto de sons denotava ar grave, choros se misturavam a barulhos de passos apressados, ordens eram dadas, objetos removidos e manipulados freneticamente.
Mas os sons foram se apagando gradualmente e depois que se foram de vez, uma aura de bem-estar completa, total, se apoderou de mim.
E aqui estou, leitor, leitora, tendo suprimido, corado de vergonha, a ressalva a Deus no poema.
Estou com ela, claro, fiel cumpridora de promessas! Seu nome? Perpétua das Graças Anunciação.
Aliás, nossos nomes têm tudo a ver com este lugar maravilhoso, divinal, onde receberemos vocês um dia, com alegria e carinho.
Tudo a seu tempo!
Autor: José Henrique Vaillant - Publicado em novembro/2006