Não pensem que sou um chato de carteirinha e crachá. Nem que ando aos beijos e abraços com a aterosclerose numa idade já provecta. Ela até pode estar de piscadelas libidinosas pro meu lado, mas acelero a autocrítica e fujo de suas investidas maliciosas, como o diabo da Cruz.
Nosso Bairro Belvedere, em Bom Jesus do Norte, outrora calmo e tranquilo, está sucumbindo gradual e inexoravelmente às mazelas comuns a grandes conglomerados populacionais. Furtos de residências são uma constante, e intuo até que deve ser o pedaço municipal que tem a maior metragem per capita de câmeras de segurança e cercas eletrificadas. Sinto-me monitorado desde o momento em que saio portão afora, um rotundo figurante do filme 1984, de Orwell. Só me falta ser objeto das caras e bocas e as demais sem-gracices do Pedro Bial.
Com a natural expansão demográfica, a algazarra dos animais de estimação é outro pormenor nessa análise. Melhor dizendo, "pormaior". Avolumou demasiadamente no tom, alguns casos ultrapassando o limite do razoável. Meu lar doce lar, estrategicamente localizado de norte a sul, leste a oeste com casas que hospedam caninos de variados pesos, gêneros, tons e matizes, é premiada com uivos, latidos e lamentos em todos os pontos cardeais e papais, 24 horas por dia, 7 dias por semana. Sem falar dos animais de rua, tema, aliás, que merece até compêndios sobre problemáticas sanitárias.
Os que mais exasperam são, curiosamente, os cachorrinhos pequenos, que a natureza equipou com aquelas carinhas e jeitinhos encantadores, mas cobrando um alto preço por isso, tornando-os os mais irritantes quando de seus desejos e necessidades contrariados. Impressionante a capacidade que têm de reclamar, chorar, latir insistentemente, intrepidamente, incansavelmente. Uivos às vezes tão lancinantes que mais parecem estar sendo estripados vivos (a propósito, sugiro aos biólogos estudarem a garganta dessas espécies, pois devem ser compostas dos materiais flexíveis mais resistentes do Planeta).
Animais que lamentam tanto estão sentindo fome, sede, desconforto, dores físicas ou sentimentais. E aí cabe a pergunta: será que os donos deles realmente os amam? Não estaria caracterizado aí o chamado maus-tratos aos animais?
Uma dica: quando o barulho dos cães alheios incomodarem, faça como eu: coloque pra tocar em sua varanda uma música clássica alguns decibéis acima da emissão sonora entediante e irritante dos cães, também conhecida como au-au-au. No meu caso, Bolero de Ravel, com arranjos dos virtuoses da Orquestra Sinfônica de Berlim. Repetido à exaustão, funciona.
Quisera acreditar que os donos dos animais os fazem parar de berrar para também poderem curtir a belíssima composição, mas acho que é mais na esperança de que eu desligue o som.
Autor: José Henrique Vaillant - Publicado originalmente em outubro/2015