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1 de fev. de 2017

Bonjesino e calçadino

Retornava de São José do Calçado dia destes quando, ao divisar a Praça São João, entrada de Bom Jesus do Norte, cheguei a me assustar um pouco com as duas figuras que vi ao longe. Melhor dizendo: dois "guarda-roupas envernizados na tonalidade mogno!" Ao me aproximar mais, a constatação: eram Bonjesino e outro ciclope até então desconhecido.

- Para aí, chefia, arremeteu o gigante em frente à moto ainda em movimento, aquela mão direita descomunal espalmada no ar em saudação à moda hitlerista. - Há quanto tempo não o vejo, meu cronista predileto -, trovejou, já dando o abraço de paquiderme antes mesmo que eu parasse.  

- Como tem passado, Bonjesino?

- Se melhorar, estraga. E você, chefia?

- Fora o reumatismo e a psoríase...

- Tá vindo de São José das Broas?

- Broinhas -, respondi à menção da alcunha que antigamente dava até morte, mas que o povo calçadense atual aceita de boa.


Para quem não sabe, Bonjesino é meu velho personagem fictício, um mulato gigantesco no tamanho tanto vertical quanto horizontal. Boa-praça, de índole pacífica, ingênuo como uma criança, só fica zangado quando alguém critica os políticos brasileiros, especialmente os de sua(s) Bom Jesus, que ele julga os mais competentes, realizadores e honestos do Planeta. Aí, sai de baixo!

- Broinhas, é? Nem todos, nem todos. Olha um broão ali -, disse, apontando o indicador com uma unha duvidosa em direção ao seu acompanhante todo sorrisos.

- Tripé, chega mais -, berrou, apresentando-me: - Meu primo, chefia. Mais broa que fubá com leite no forno.

- Muito prazer -, disse o novo bólido, oferecendo a mão ameaçadora que deixou a minha mais que dolorida, com sintoma de esmagamento dos metacarpos.


- Ui, digo, prazer...

- Calçadino, às suas ordens -, fez uma mesura tão ampla que quase o derrubou.

- Mas... Tripé?

- Apelido de Calçadino, chefia. Botaram uma vez que o viram pelado..., aí pegou.

- Ah, entendi. A propósito, Bonjesino, você não tem apelido, pelo menos eu não conheço...

- Bem que tentaram, chefia, mas comecei a dar porrada a três por dois, aí pararam...

- Qual era?

- Bonjesino Tromba.

- Entendi de novo.

- Zêinrriqui, viu como Calçado está uma maravilha? Nossa prefeita, além de bonita, elegante, é tão competente... Está transformando nossa cidade na mais moderna e desenvolvida do estado, do país, talvez do mundo... -, jogou Calçadino por terra com estas palavras minha esperança de que um confronto ideológico em família pudesse equilibrar os discursos de adoração.

- Epa. Pegou a doença de Bonjesino? -, retruquei.

Nesse momento quatro sobrancelhas espessas deram uma guinada vertiginosa, transformando-se em traços que lembravam os de cartunistas de terror. Dois pares de olhos me fulminavam.

- Não falei, primo, não falei? É esse... o escrevedorzinho rabugento, que adora criticar... -, disse entredentes Bonjesino. E antes que meu desmesurado acusador desfiasse contra mim todo o mantra acumulado ao longo de anos de uma amizade conturbada, pedi:

- Stop. Seu primo, pelo visto, é tão exagerado quanto você. Concordo que a prefeita de lá é bonita e elegante. Parece que ela é bem intencionada, mas...

- Nem mas nem porém, todavia, contudo. O primo Calçadino está certo. Aquela cidade encantadora entre montanhas e flores está mais encantadora e mais entre montanhas e flores do que nunca...

Foi aí que minha antiga rapidez de raciocínio despertou de uma longa hibernação para alfinetar:

- Claro, claro. Em termos comparativos com lugares em redor...­- , pausei com uma olhada cínica para o nada, a boca num esgar de falso conformismo para dar mais ênfase no complemento:

- ... Calçado é mesmo uma pérola...

- Epa! Captei vossa mensagem, ex-guru. Poparáááá. Embora não tão privilegiadas pela mãe natureza como Calçado, Bom Jesus estão um brinco, porque nossas autoridades nem conseguem dormir de tão preocupadas com a boniteza, com a paisagem e a mobilidade urbanas. Aliás, coitadinhos de nossos prefeitos, vereadores, secretários, e até carimbadores adjuntos. Chegam a trabalhar 20 horas por dia de tão comprometidos em resolver todos os nossos problemas...

- Sei, sei...

- Não faça essa cara de paisagem, chefia. Aquela rua que você passa com essa moto velha todo dia pra subir o morro, por exemplo... Viu o calçamento que refizeram? Hein? Hein? Se eu fosse você teria vergonha de botar um troço tão decrépito pra rodar num tapete como aquele...

- Só faltava deixarem aquilo como estava, Bonjesino. Uma montanha russa, com mais entrâncias e reentrâncias que o Grand Canyon, isso sim.

- Mas só ficou desse jeito uns cinco anos, seu maledicente! O pessoal é rápido para  resolver as coisas...

Nesse momento Calçadino apartou:

- Falar nisso, a estradinha que contorna nossa cidade não ficou uma jóia rara? Alguém por aí criticava tanto...-, interrompeu o broão com olhos enviezados feitos os da cigana oblíqua e dissimulada machadiana. - Quero ver agora os elogios -, disparou, gestos ainda mais eloquentes que as palavras.

- Pode esperar sentado, primo, que em pé cansa. Gente como essa... -, interveio Bonjesino desdenhosamente, com ares de muxoxo.

- Vocês acham mesmo que aquilo podia ficar do jeito que estava há mais de século? -, exagerei. - Mais um segundo que seja com todo aquele barreiro e poeireiro?, - abusei do exagero, incluindo o neologismo, pra reforçar a provocação.

- Tsc., tsc, tsc. Como você aguenta, primo Bonjesino?

- Depois do que ele deitou falação daquele trechinho que vai de Bom Jesus ao Cruzamento de Itaperuna..., tô pensando em desistir dessa amizade, primo Calçadino.

- O que eu disse de mais? -, perguntei. - Que depois do Cruzamento em direção a Itaperuna e ao Rio de Janeiro a BR parece uma rodovia da Suíça, e o nosso pedaço, um queijo suíço?

- Como se não soubesse que a estrada é estadual e não depende do município -, lembrou Bonjesino, na defensiva.

- Saber, eu sei. Você que não entendeu quando eu disse da falta de representatividade, de pressão política. Quantos bom-jesuenses trafegam por aquela estrada diariamente, décadas e décadas pulando mais que pipoca na panela, correndo riscos por falta de sinalização. Incrível estar assim até hoje...

- Viu, Calçadino, como esse homem é ansioso? E virando-se para mim, explicou, num didatismo malemolente:

- Chefia, se liga. O que são alguns anos de espera para um benefício eterno? Não tem nem 30 anos que a estrada está ruim e você já quer logo asfaltinho niveladinho, acostamentinho direitinho, faixinhas amarelinhas e branquinhas, até plaquinhas indicativinhas...

- Para com essa viadagem, Bonjesino. O dia que morrer um parente seu acidentado...

- Cruzes. Xô urubu. Além de maldoso com nossas incansáveis autoridades, virou agourento também? Esse, primo, é capaz de criticar até o sagrado Lula, aquele bem-aventurado  que tirou os brasileiros da miséria. Eu mesmo... snif, snif-, um soluço obrigou-o a uma pausa, mas esforçando-se para se recompor, Bonjesino prosseguiu: - Eu mesmo só fui saber o gosto de um bife de paleta depois que o idolatrado Lula me deu Bolsa Família. Um santo..., um  santo...

- Do pau oco...

-Depois de velho deu pra  obscenidades, chefia? Saiba que o divino Lula é homem com H. Casado, teve filhos...

- Nãoooo, Bonjesino. Só a casca, entendeu?, só a casca é de santo, por dentro é oco, oquinho da silva...

- Oquinho é você. Oquinho e ingrato. Mas vai ser castigado, ah, se vai. Sabe como? Tendo vida longa  pra poder engolir, e até escrever, quando o Vaticano beatificar e depois santificar esse homem enviado por Deus...

- Querem saber? Passem bem, que já estou indo.

- Espera, chefia. Vamos marcar uma hora para a gente conversar mais. Você, eu, Calçadino, Apiaquino...

- Quem?

- Nosso tio Apiaquino, de...

- Apiacá?

- Adivinhão!

- Adoraria -, disse eu depois de um momento para me refazer do susto. - Mas não vai dar porque estou preparando minha mudança ...

- Vai mudar pra onde, homem de Deus?

- Quirquistão.

- !!!??? 


Autor: José Henrique Vaillant - Publicado em junho/2015