Por intermédio da minha personagem Bonjesino dei conhecimento aos amáveis leitores e graciosas leitoras da “tragédia marítima” pela qual passei nessa segunda vinda para a Cidade entre montanhas e flores (a primeira vez, sem infortúnios dignos de registro, foi no longínquo 2004, tendo cá permanecido dois anos). E por que cargas d´água (ops) vocês querem saber da minha vida? Presumo que nem um pouco. Mas é um assunto, e meu ganha-pão é assuntá.
Gosto daqui. E Bonjesino já lhes disse na edição 245 que vim de mala e cuia me juntar às broas, broinhas e broões em fevereiro deste, oriundo de Bom Jesus do Norte. Contou também da catadupa, da torrente, da catarata que caiu na casa em que fui morar no bairro Serra Pelada alguns dias depois. Detalhe: dentro da casa. Mais precisamente em cima da mesa de trabalho, computador salvo por puro reflexo.
Casa boa, grande, mas o incidente levou-me a descobrir que as caixas d´água eram de amianto. E muito embora a proprietária tenha consertado a calha causadora do dilúvio, não quis trocar aquelas. Daí que dei no pé com apenas um mês de contrato, vindo aportar (ops, de novo) na Divineia, porque quem quer chegar aos 100 não pode descuidar da saúde, rsss.
Apartamento novo, com caixas de PVC, como manda o figurino. Mas em 1/6 a água resolveu me assustar outra vez. Aterrorizar, melhor dizendo. O ímpeto avassalador dela, sua fúria fenomenal ocasionou a transformação das suaves gotas em pedregulhos, que pessoas juraram terem-nos vistos até do tamanho de uma bola de tênis.
E a natureza lançava as bolas com a força de milhões de Federes, impulsionada pelo vendaval concorrente do Katrina. Até a capa de acrílico do marcador de luz do apartamento foi pras cucuias com tanto granizo que pareciam granitos. Imaginem os telhados principalmente da gente pobre! E os pobres carros que têm como lar os meios-fios? No dia seguinte a cidade parecia um imenso depósito de entulho, cada quadra com seu monturo de estimação.
Mas eis o que queria dizer nesse meu estilo Rodrigueano de meia tigela: naquela noite, os cerca de cinco minutos, se tanto, (luzes instantaneamente apagadas), não cheguei a ver o vulto da dama da foice, mas senti sua presença. O rival do Katrina soprava com tanta violência que as frinchas de portas e janelas produziam uma sinfonia macabra a relembrar o apito histérico das locomotivas de antanho.
O telhado de alumínio da cobertura do prédio e de outros imóveis próximos reverberavam alucinadamente, mas foi quando as cinco janelas dos apartamentos ao lado pulverizaram-se que meu sangue gelou de vez. Seria aquela algaravia tenebrosa de furor o hino triunfal da besta?-, pensei, lamentando ser agnóstico para poder evocar Deus em total plenitude da fé que o momento exigia.
Daí que fiquei meio abestalhado num canto, estado de espírito em frangalhos, quando a vizinha bate à porta:
- Seu Zé, acho que o prédio está balançando. Todas as janelas estão quebradas. Tudo alagado. TV, já era (ficava pertinho de uma das janelas).
- Entre, convidei-a, sentindo uma ponta de vergonha por estar tão apavorado, sendo eu um privilegiado pela potestade que mandou a pesada artilharia de pedras do lado oposto à unidade que habito, ficando o apartamento dela como meu escudo. A coitada, no outro dia, me mostrou os trapos de suas cortinas: os blackouts delas pareciam triturados em máquinas de moer carne!
- Não senti balançar não, fique tranquila, tranquilizou-a um artista da dissimulação. No entanto, uns dois minutos depois veio a calmaria, o silêncio que falava tão delicadamente em nosso íntimo.
- Foi embora, louvado seja Deus, disse minha vizinha evangélica.
- Sim. Ufa!, exclamei, aliviado e agradecido por não ter sido dessa vez que noticiariam “com profundo pesar” o meu nome. E se meu coração resistiu a tão assustadora intempérie, terão de esperar muito tempo ainda.
Se Deus quiser (ops final)!
Autor: José Henrique Vaillant - Publicado originalmente em junho/2016