Desde aquele dia na feira, onde o velho comprara três ovos e 250 gramas de bife (- adoro bife a cavalo -, comentou com o feirante), percebia que muito embora as vestes rotas, perigosamente rondando a fronteira da maltrapilha, cabelos em desalinho, um surrado par de tênis Adidas “paraguaio” com calcanhares perpendiculares, aquele cidadão, positivamente, era possuidor de algo que o distinguia, que o isentava da banalidade.
Intrigado, tinha a sensação de já tê-lo visto na TV, e esta sensação se fez mais nítida quando, numa outra oportunidade em que o seguia, viu e ouviu o velho ponderar com o atendente, no balcão de penhores:
- Só isso, meu filho?
- Seu anel é folheado, senhor.
- É porque nunca me ufano do brilho dos objetos, valorizo apenas seu ofício...
O homem, que já estava obcecado em decifrar o velho, seguiu-o quando este saiu do estabelecimento de crédito. Quanto ele entrou no ônibus, até pensou desistir de ir também, pois o coletivo estava lotado demais. Mas a curiosidade de saber onde aquela figura morava falou mais alto.
Chegando num subúrbio bem remoto, desceram. Começaram a andar, o velho na frente, ele atrás, discretamente, guardando certa distância.
Seguiram por uma ruela de terra batida, ladeada de casebres. Após uns 10 minutos de caminhar, o velho entrou numa casinha humilde, cujas paredes já nem se lembravam dos dias de glória com a cal.
O homem ficou à distância uns 15 minutos mais. Depois, pretextando sede, pediu água. Recebeu permissão para entrar, transpôs o portão de madeira e fechou-o com a taramela, aguardando numa varandinha de piso de cimento liso, todo esboroado.
Quando o velho voltou com uma moringa de barro e um copo vazio de massa de tomate, o homem olhou mais atentamente o interior da moradia e viu que não havia geladeira.
- De moringa é melhor, não é? Dá aquele gostinho de antigamente..., disse o homem, a fim de entabular um papo.
- É. Geladeira, além de cara, consome energia elétrica.
- Ainda mais nestes tempos bicudos, não é?, redarguiu o homem.
- Pense, rapaz, como seria melhor o mundo sem geladeiras. Só consumiríamos produtos frescos, e a camada de ozônio não estaria tão esburacada quanto esta calçada...
- Olhando por este ângulo...
Depois de uma boa hora de papo, o homem percebeu que falava com um sujeito bem articulado, inteligente, culto, perspicaz. E justamente por ser assim, no entender do homem, o velho não precisava viver uma pobreza franciscana. Daí tomou coragem e indagou:
- O que o Sr. pensa da pobreza?
O velho baixou os olhos para si próprio por um instante, e calmamente levantou a cabeça para cravá-los novamente nos do seu interlocutor:
- Pobres são aqueles que precisam de muito para viver! Eu só preciso de 10% do que ganho...
- Como?
- Eu disse que só preciso de 10% do que ganho. O resto eu dou para instituições de caridade.
O homem já sabia que o velho era ateu. Já sabia da vida contemplativa que levava, sem luxos, com poucos bens materiais, um asceta, em suma.
- Espécime raro de socialista autêntico, pensou o homem. Então, disparou a pergunta cuja resposta o deixou lívido, inteiramente desconcertado:
- Em que trabalha o Sr.?
- José Mujica, muito prazer. Sou o presidente da República, meu filho!
Em
tempo: se o amável leitor e a graciosa leitora interpretaram este
texto como ficção, acertaram. Mas não seria de todo inverossímil, se real fosse (vejam por quê).
Autor: José Henrique Vaillant