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1 de mai. de 2013

Afasta de mim este cálice!

Elegi com o auxílio do clima natalício (de conotação às avessas para mim) o tema que dele hei de estabelecer alguns considerandos muito próprios na atmosfera que mais domina corações e mentes nesta época.

Não consigo mais absorver nesta altura da vida e certa decepção pela carência do exercício da solidariedade algum alumbramento capaz de descortinar em meu íntimo sincera alegria ou entendimento de coerência desta festa e das que dela se sucedem que justifique o estado de graça e encantamento.



O amável leitor e a graciosa leitora saibam de antemão que se continuarem a ler este texto o fazem por sua própria conta e risco, porque minha cabeça está povoada de lucubrações que podem deprimi-los e não quero nem tenho o direito de lhes contaminar. 


Parem por aqui se conseguem ver cores numa festa que encorpa as desigualdades, que recrudesce as injustiças, tonifica a hipocrisia e acirra a vaidade, deformidades milenares cuja evolução parece ter atingido o cume em nossa era.

Que me perdoem as exceções, mas o artificialismo personificado em faces supostamente sensíveis e comovidas, atarraxadas por cima das verdadeiras, das atormentadas pelas vicissitudes sempre materiais, às vezes morais, é algo que embrulha os estômagos dos que embora sujeitos a dançar para não perecer conservam aversão pela música e o ritmo.

Nesta época a dissimulação e a impostura se revelam sem retoques.

Mimos extremosos, sensações "degustativas" as mais sublimes, troca de afagos e as demais mesuras de sempre decorrem de atitudes pretensamente reverenciosas ao nascimento de Alguém que poucos se lembram no insano cotidiano e muitos sequer no 25/12. 


De seus iguais terrenos muito menos, a não ser por interesses egoisticamente afetivos, econômicos ou sede de poder.

A data natalícia se transformou num acerto de contas, um tempo de pretextos para justificarmo-nos diante de um espelho com o aço corroído pelo esquecimento que temos para com nossas faltas e nossas a cada dia mais e mais robustecidas imperfeições. 

Em vez de nos voltarmos para nosso interior e questionarmos nossos valores de modo a modificarmos nossos passos, preferimos fingir. 

Sem querer generalizar e enfaticamente cultuando as gloriosas exceções que existem (vos saúdo devotamente, homens e mulheres de boa vontade), boa parcela nos portamos no transcorrer do ano entregues à hipocrisia, simulando sermos o que gostaríamos, para os outros e para nós mesmos. 

Especialmente nesta época, em vez de nos prostrarmos diante da tribuna da consciência preferimos continuar a farsa, até nos apresentando de bons. E o que é pior: acreditando em nossas próprias mentiras!

Quem haverá que não condene (da boca para fora; envidar esforços para minorar, aí complica) a existência de amor e carinho para alguns, indiferença ou ódio para outros; castelos e mansões num lado, favelas e cortiços pestilentos a abrigar matérias infelizes, no outro lado; brinquedos caríssimos, de tecnologia avançada para uns poucos infantes privilegiados, e para a maioria sequer um boneco ordinário; comensais com as panças abarrotadas de iguarias as mais diversas e sublimes, noutras barrigas o ronco injurioso de uma fome abominável e maldita?

Em qual Escritura está o dispositivo divinal que permite nossas papilas gustativas se agitarem freneticamente pelos salmões e caviares enquanto assistimos na TV gente pequenina e gente grande disputando sofregamente os monturos dos lixões nas grandes cidades? 

De suportarmos às vezes sem um franzir de cenho cenas como a daquelas crianças etíopes (e de outras nacionalidades mais) esqueléticas sugando sangue nas tetas de suas mães-zumbis com os olhos toldados pelo tormento da fome? 

A estas pessoas errantes, sem pátria, sem lar, sem razão, lhes é negada até mesmo a imponderabilidade da finitude da vida, a hora incerta para a sentença certa, que é a morte: vêem-na com indescritível pavor no dia a dia, dama da foice cruel, sanguinária. 

São nada menos que seres humanos, gente como nós, qual presas esfoladas vivas pelo predador, neste caso seu próprio semelhante!

O Filho de marceneiro que nasceu sem luxo e padeceu condenado pelas mãos de uma multidão ignóbil não podia ser tão afrontado, tão escarnecido, numa inversão de valores de tal ordem que se adequaria com mais propriedade se o que se então comemora fossem sua paixão e morte. 

Esta é a época do paroxismo da nossa encenação, onde os sentidos acumulados extravasam-se gloriosamente sob formas falsamente edificantes para retomarem sua face verdadeiramente corrompida e dissimulada com mais vigor nos dias que se sucedem.

Eis, leitor, leitora, o que experimento desde o momento da primeira piscadela de uma pequena lâmpada colorida, passando pelos irresistíveis apelos consumistas com as indefectíveis notas monocórdias e tediosas do Jingle Bell e as barbichas brancas em caras balofas, tão postiças quanto nosso modus vivendi. 

Perdoem-me por não destinar-lhes as saudações de praxe. Falta-me legitimidade para fazê-lo porque também sou peça desta feroz engrenagem que move a vida em direção a mares revoltos da consciência, para desaguar na farisaica província da hipocrisia, a mais povoada da alma.

Chegou até aqui? Não me queira mal, eu  avisei!

Autor: José Henrique Vaillant - Publicado em dezembro/2006