Elegi com o auxílio do clima natalício (de conotação às avessas para mim) o tema que dele hei de estabelecer alguns considerandos muito próprios na atmosfera que mais domina corações e mentes nesta época.
Não consigo mais absorver nesta altura da vida e certa decepção pela carência do exercício da solidariedade algum alumbramento capaz de descortinar em meu íntimo sincera alegria ou entendimento de coerência desta festa e das que dela se sucedem que justifique o estado de graça e encantamento.
O amável leitor e a graciosa leitora saibam de antemão que se continuarem a ler este texto o fazem por sua própria conta e risco, porque minha cabeça está povoada de lucubrações que podem deprimi-los e não quero nem tenho o direito de lhes contaminar.
Parem por aqui se conseguem ver cores numa festa que encorpa as desigualdades, que recrudesce as injustiças, tonifica a hipocrisia e acirra a vaidade, deformidades milenares cuja evolução parece ter atingido o cume em nossa era.
Que me perdoem as exceções, mas o artificialismo personificado em faces supostamente sensíveis e comovidas, atarraxadas por cima das verdadeiras, das atormentadas pelas vicissitudes sempre materiais, às vezes morais, é algo que embrulha os estômagos dos que embora sujeitos a dançar para não perecer conservam aversão pela música e o ritmo.
Nesta época a dissimulação e a impostura se revelam sem retoques.
Que me perdoem as exceções, mas o artificialismo personificado em faces supostamente sensíveis e comovidas, atarraxadas por cima das verdadeiras, das atormentadas pelas vicissitudes sempre materiais, às vezes morais, é algo que embrulha os estômagos dos que embora sujeitos a dançar para não perecer conservam aversão pela música e o ritmo.
Nesta época a dissimulação e a impostura se revelam sem retoques.
Mimos extremosos, sensações "degustativas" as mais sublimes, troca de afagos e as demais mesuras de sempre decorrem de atitudes pretensamente reverenciosas ao nascimento de Alguém que poucos se lembram no insano cotidiano e muitos sequer no 25/12.
De seus iguais terrenos muito menos, a não ser por interesses egoisticamente afetivos, econômicos ou sede de poder.
A data natalícia se transformou num acerto de contas, um tempo de pretextos para justificarmo-nos diante de um espelho com o aço corroído pelo esquecimento que temos para com nossas faltas e nossas a cada dia mais e mais robustecidas imperfeições.
A data natalícia se transformou num acerto de contas, um tempo de pretextos para justificarmo-nos diante de um espelho com o aço corroído pelo esquecimento que temos para com nossas faltas e nossas a cada dia mais e mais robustecidas imperfeições.
Em vez de nos voltarmos para nosso interior e questionarmos nossos valores de modo a modificarmos nossos passos, preferimos fingir.
Sem querer generalizar e enfaticamente cultuando as gloriosas exceções que existem (vos saúdo devotamente, homens e mulheres de boa vontade), boa parcela nos portamos no transcorrer do ano entregues à hipocrisia, simulando sermos o que gostaríamos, para os outros e para nós mesmos.
Especialmente nesta época, em vez de nos prostrarmos diante da tribuna da consciência preferimos continuar a farsa, até nos apresentando de bons. E o que é pior: acreditando em nossas próprias mentiras!
Quem haverá que não condene (da boca para fora; envidar esforços para minorar, aí complica) a existência de amor e carinho para alguns, indiferença ou ódio para outros; castelos e mansões num lado, favelas e cortiços pestilentos a abrigar matérias infelizes, no outro lado; brinquedos caríssimos, de tecnologia avançada para uns poucos infantes privilegiados, e para a maioria sequer um boneco ordinário; comensais com as panças abarrotadas de iguarias as mais diversas e sublimes, noutras barrigas o ronco injurioso de uma fome abominável e maldita?
Em qual Escritura está o dispositivo divinal que permite nossas papilas gustativas se agitarem freneticamente pelos salmões e caviares enquanto assistimos na TV gente pequenina e gente grande disputando sofregamente os monturos dos lixões nas grandes cidades?
Quem haverá que não condene (da boca para fora; envidar esforços para minorar, aí complica) a existência de amor e carinho para alguns, indiferença ou ódio para outros; castelos e mansões num lado, favelas e cortiços pestilentos a abrigar matérias infelizes, no outro lado; brinquedos caríssimos, de tecnologia avançada para uns poucos infantes privilegiados, e para a maioria sequer um boneco ordinário; comensais com as panças abarrotadas de iguarias as mais diversas e sublimes, noutras barrigas o ronco injurioso de uma fome abominável e maldita?
Em qual Escritura está o dispositivo divinal que permite nossas papilas gustativas se agitarem freneticamente pelos salmões e caviares enquanto assistimos na TV gente pequenina e gente grande disputando sofregamente os monturos dos lixões nas grandes cidades?
De suportarmos às vezes sem um franzir de cenho cenas como a daquelas crianças etíopes (e de outras nacionalidades mais) esqueléticas sugando sangue nas tetas de suas mães-zumbis com os olhos toldados pelo tormento da fome?
A estas pessoas errantes, sem pátria, sem lar, sem razão, lhes é negada até mesmo a imponderabilidade da finitude da vida, a hora incerta para a sentença certa, que é a morte: vêem-na com indescritível pavor no dia a dia, dama da foice cruel, sanguinária.
São nada menos que seres humanos, gente como nós, qual presas esfoladas vivas pelo predador, neste caso seu próprio semelhante!
O Filho de marceneiro que nasceu sem luxo e padeceu condenado pelas mãos de uma multidão ignóbil não podia ser tão afrontado, tão escarnecido, numa inversão de valores de tal ordem que se adequaria com mais propriedade se o que se então comemora fossem sua paixão e morte.
O Filho de marceneiro que nasceu sem luxo e padeceu condenado pelas mãos de uma multidão ignóbil não podia ser tão afrontado, tão escarnecido, numa inversão de valores de tal ordem que se adequaria com mais propriedade se o que se então comemora fossem sua paixão e morte.
Esta é a época do paroxismo da nossa encenação, onde os sentidos acumulados extravasam-se gloriosamente sob formas falsamente edificantes para retomarem sua face verdadeiramente corrompida e dissimulada com mais vigor nos dias que se sucedem.
Eis, leitor, leitora, o que experimento desde o momento da primeira piscadela de uma pequena lâmpada colorida, passando pelos irresistíveis apelos consumistas com as indefectíveis notas monocórdias e tediosas do Jingle Bell e as barbichas brancas em caras balofas, tão postiças quanto nosso modus vivendi.
Eis, leitor, leitora, o que experimento desde o momento da primeira piscadela de uma pequena lâmpada colorida, passando pelos irresistíveis apelos consumistas com as indefectíveis notas monocórdias e tediosas do Jingle Bell e as barbichas brancas em caras balofas, tão postiças quanto nosso modus vivendi.
Perdoem-me por não destinar-lhes as saudações de praxe. Falta-me legitimidade para fazê-lo porque também sou peça desta feroz engrenagem que move a vida em direção a mares revoltos da consciência, para desaguar na farisaica província da hipocrisia, a mais povoada da alma.
Chegou até aqui? Não me queira mal, eu avisei!
Chegou até aqui? Não me queira mal, eu avisei!
Autor: José Henrique Vaillant - Publicado em dezembro/2006