Fica a incineração covarde e cruel do índio Pataxó Galdino, de acordo com as pérfidas e capciosas leis brasileiras (eficientemente bem exploradas em seus pontos fracos por renomados advogados), como... digamos..., uma brincadeirinha pueril e inocente (talvez a única que o dinheiro farto e inesgotável ainda não havia proporcionado aos algozes do desventurado indígena).
Não é de estranhar que mais um caso de crime perverso fique impune e que contribua e incentive cada vez mais para a escalada da violência, pois além das leis serem reconhecidamente ruins, muitos a interpretam tomados por irresistíveis sentimentos de pusilanimidade e condescendência, quando não por coisas piores.
Parece evidente que as leis, por piores que sejam, jamais poderiam se apiedar de assassinos frios e cruéis, confessos, que premeditam seus crimes.
A persistir essa inversão da lógica e dos valores morais que ora vivenciamos, não seria surpresa se essas leis, recheadas de dicotomias, chegassem ao paroxismo de culpar a vítima pelo crime que ela própria sofreu.
A decisão da magistrada foi inspirada nos depoimentos dos acusados que disseram não ter tido a intenção de matar.
Ora, enquanto a maioria dos brasileiros quase nada têm à mesa e frustra-se por isso, outros frustram-se por terem tudo.
E por terem tudo julgam que também a tudo podem (parece que acertadamente), até mesmo, e por que não, supliciar pessoas.
E aí, muito provavelmente tenham razão quando disseram que a intenção não era realmente a de matar.
Talvez, quem sabe, deformar completamente o índio para verem com é que ficaria, ou fazê-lo dançar uma hórrida coreografia transformando-se numa fogueira viva?
Como poderiam pensar em matar se com isso sua excitação perversa teria um rápido fim?
Para eles, o ideal é que a pobre criatura ardesse ao máximo mas que não passasse do limiar da resistência, conservando-se lúcido num horror indescritível a fim de satisfazer a sanha dantesca de animais ensandecidos!
Não é necessário ser um profissional da justiça para depreender que a crueldade não consistia meramente em matar. O caráter hediondo do crime foi a forma como foi cometido, o motivo torpe e sem sentido em que foi inspirado, o requinte de frieza e um vazio impressionante de senso humanitário de quem os cometeu.
É claro que não se pode defender a hipótese de que se submeta ao clamor popular, a priori, as decisões soberanas e imparciais (em tese) do Judiciário.
Mas seria de bom alvitre não perder de vista que o Código Penal brasileiro é antiquado, anacrônico e obsoleto, além do fato de que nem tudo que é legal é moral, razões mais que suficientes de que não se deve a tudo decidir obedecendo a algidez dos compêndios.
Antes de tudo é necessário fazer-se uso, sem parcimônia, do bom-senso e do discernimento, pelo menos até o momento em que possamos contar com uma Justiça moderna e eficaz, se é que a possamos ter um dia.
O Brasil, campeão da impunidade e vergonhosamente refratário em apenar os criminosos pertencentes à sua minoritária casta de privilegiados necessita urgente de mudanças e se adequar definitivamente como uma nação justa e apta a ingressar qualitativamente no cenário mundial.
Casos como este do índio Galdino e tantos outros mancham, enodoam, vexam nossa reputação.
É inconcebível que os que ocasionaram propositadamente a desgraça do índio, de sua família, de sua gente, tenham um fim que não o da condenação à pena máxima.
Se tal não ocorrer, mais uma vez ficará caracterizado claramente que o alto poder aquisitivo e a influência das famílias dos assassinos foram o que ditaram o veredicto infame.
Certos caras-pálidas, que já haviam surrupiado suas terras, a saúde e a dignidade do seu povo, dando-lhes em troca espelhos e apitos, desta vez resolveram inovar: passaram a atear-lhes álcool, fósforos acesos, hipocrisia e cinismo.
Autor: José Henrique Vaillant - Publicado em setembro/1997