Bom Jesus amanheceu com um céu carregado de densas nuvens. O horizonte plúmbeo compunha um cenário triste, opressor, parecendo que a Natureza queria contribuir com uma decoração característica para os sombrios acontecimentos daquele dia.
Catherine, uma amiga, quarentona
simpática, grande ser humano, vinha de cabeça baixa com um lenço a
enxugar o nariz. Atravessei a rua para cumprimentá-la, mas quando me
aproximei, senti um calafrio.
A face irretocável do desespero! Rosto
inchado, borrado pela maquiagem diluída pelas lágrimas que fluíam
aos borbotões.
– Que bicho a mordeu, Catherine...?
Epa..., epa..., não chore..., calma..., calma...
Praticamente arrastei-a até um banco
da Praça Astolpho Lobo. Antes de sentar-se ela desabou em meu ombro
num choro ainda mais convulsivo, descontrolado, balbuciando palavras
desconexas. - Minha filha...
- Hein???!!! – exclamei sobressaltado, pensando na bonita jovem de 18 anos, carinhosa, simpática, um doce de criatura, como a mãe. Para mim sempre será aquela garotinha que vi crescer, considerando-a como minha própria filha.
– O que aconteceu à Tárin? -,
perguntei já também meio descontrolado, adrenalina a mil.
Em meio aos soluços, as informações
começaram a surgir:
- Ela..., ela..., na Internet..., mais
prantos a contrariar minha aguda curiosidade.
- Internet... O que tem a Internet?,
indaguei com uma calma aparente que estava longe de sentir de
verdade.
- Fotos... Publicaram fotos dela...
Em segundos senti a tragédia,
assimilei sua dramaticidade, e com a revolta instantânea que de mim
se apoderou, encarei-a nos olhos e indaguei:
- Quem?
- O ex.
- O cara de Vitória que ela pretendia
me apresentar?
- Sim
- E ela?
- Quis se matar. Um montão de
comprimidos...
- Mas...
- Os médicos lavaram o estômago...
- Maldito..., balbuciei.
Depois de acalmar Catherine e levá-la
para casa, onde vivia só com a menina, inteirei-me dos detalhes do
ocorrido. O roteiro, embora monocórdio, repetitivo, é sempre
devastador para a vítima, os familiares, os amigos. Extremamente
traumático, marca a ferro e fogo as vidas de tantos que gravitam na
órbita das famílias; destrói sonhos; dilapida a auto-estima;
deprime, angustia e envergonha ad eternum.
Tamanha sordidez, insensibilidade,
malevolência de um crápula brutal que fotografa e filma as
parceiras nuas, em posições constrangedoras nesses aparelhinhos
infernais, para depois compartilhar o material abjeto na Web, teria
de ter uma punição. Canalhas desse naipe são criminosos covardes,
imorais, aproveitadores da vulnerabilidade e ingenuidade juvenis.
Algumas semanas depois...
Como Vitória é bonita!, eu pensava
caminhando no calçadão da Praia de Camburi, alguns dias depois.
Sabia apenas que o safado era homofóbico (dizia sempre a Tárin que
detestava gays, tinha inclusive agredido um rapaz que se engraçou
com ele), e de que morava ali por perto. Não tendo o endereço,
tinha esperança de encontrá-lo num dos vários bares e restaurantes
da orla. Nunca nos vimos, mas portava algumas fotos recentes, não
seria difícil identificá-lo.
Fiquei uma semana de atalaia, ampliando
o espaço geográfico de minha busca à medida que os dias
transcorriam, passando a monitorar shoppings, danceterias e outros
points. Minha determinação valeu a pena. Certa tarde encontrei o
bastardo comendo um lanche num desses famosos fast-foods.
Não havia dúvidas. Porte atlético,
de 35 a 40 (velho para Tárin), penteado tipo Moicano, à la Neymar,
(velho também para isso), exatamente como nas fotografias,
acompanhado de vários adolescentes de ambos os sexos (novos
relativamente ao babaca).
Pedi um lanche e sentei-me
discretamente numa mesa ao lado. Mastigava devagar, todos os meus
sentidos voltados para a algaravia. Um frêmito me invadia,
rejubilava-me por ter renovado a diária com a locadora de
automóveis.
Uns 30 minutos depois o bando se
desfez. O infame dirigiu-se ao ponto de ônibus, próximo ao local
onde eu havia estacionado o carro. - A sorte é minha cúmplice,
pensei quando ele tomou um micro-ônibus e parti no encalço.
Desceu justamente nas imediações que
percorri durante uma semana em Camburi. Parei o carro e o segui a pé.
Atravessou a pista e ganhou uma via transversa. Caminhou mais uns 300
metros até chegar a um prédio de apartamentos. Entrou.
Esperei alguns minutos e dirigi-me ao
prédio. Toquei a campainha da portaria. Uma voz metalizada no
interfone perguntou o que eu queria.
– O rapaz que subiu agora perdeu uma
carta. Poderia entregá-la?
- Passe-a por baixo da porta -,
respondeu o porteiro energúmeno, sem sequer me olhar pela imponente
vidraça.
Ato seguinte, já de volta ao carro,
liguei para a minha correspondente em Colatina, uma balzaquiana de
rara beleza, classuda, irresistivelmente sedutora: - A águia pousou,
informei, recebendo um ok como resposta.
No dia seguinte devolvi o veículo à
locadora, tomei um táxi e rumei para a rodoviária. Chegando em
casa, liguei o computador e acessei meu gerenciador de e-mails. A
mensagem irônica me falava baixinho, quase num sussurro: – Vou me
apaixonar por ele; é tão loquaz..., agradável..., romântico...
Abri a página do MSN:
- Me teclou naquele mesmo dia -,
digitou a parceira colatinense.
- Rápido no gatilho, não é?
- É. Disse que se surpreendeu com a
forma inusitada pela qual informei meu e-mail, através de uma carta
entregue na portaria por um sujeito...
- Gentileza do Gentil, he, he, he...
- ... Mas que não via motivos para não
fazer contato.
- Comentou sobre as fotos?
- Claro. Justamente por elas não viu
motivos para não logar...
- É..., "sua filha" é
realmente um mulherão!...
- Ah, Ah, Ah. A propósito, escolha uma
filha para mim menos sensual na próxima vez. Esses monumentos
femininos podem ser fáceis de achar na rede...
- Não me julgue um amador, sei o que
faço! Que dia vai ser o encontro dele com "sua filha"?
- Semana que vem.
- Então, inté.
- Inté. Não esqueça... www...
pontocom...
- Não vejo a hora... Boa-sorte no
servicinho...
- Tchau, cuide-se.
Desliguei o computador sentindo a alma
leve, uma intensa sensação de paz e conforto. Admirador do
profissionalismo e eficiência de minha parceira, sabia que tudo ia
dar certo. - Será que a audiência vai ser boa?, era o que me
perguntava, sabendo que todos os contatos do infeliz seriam
devidamente avisados do show de imagens que iriam desfrutar na
Internet, bem como internautas de todos os rincões do Planeta,
inclusive de Bom Jesus.
Dito e feito: showzaço!!!
- E aí? -, teclou minha eficaz
auxiliar de Colatina, no dia seguinte ao memorável acontecimento.
- Aquela calcinha que ele estava usando
era um tanto minúscula, não acha? -, observei. - Moicano de
calcinha... Mais que exótico. Escatológico!
- Ele que escolheu. Inclusive a cor do
batom vermelho-sangue, a cinta-liga e os sapatos de salto.
-"Boa-noite cinderela", como
sempre?
-Produto novo. Hipnotiza
instantaneamente, altera radicalmente a personalidade. Melhor ainda:
não permite que o cérebro registre nada do que se faz enquanto dura
o efeito.
- Não vai se lembrar de nada?
- Só sentir as dores..., sabe...,
lá... E que passou uma noite maravilhosa num motel com a mãe de uma
adolescente que viajou às pressas para visitar o pai que estava nas
últimas devido a um acidente.
- Você é demais! Obrigado.
- Às ordens.
No outro dia vi Catherine e Tárin. Nem parecia que uma tragédia havia se abatido sobre elas. Não tocamos mais no assunto, era como se nada houvesse acontecido de anormal. Apenas uma observação de Catherine, que me fez abrir um largo sorriso, mencionava discretamente o show:
- Aquele pepino era de Itu?, perguntou com uma sonora gargalhada, acrescentando: - como pôde caber?
- O vagabundo deu sorte, respondi. - Não encontraram aipim na feira...
- Aquele pepino era de Itu?, perguntou com uma sonora gargalhada, acrescentando: - como pôde caber?
- O vagabundo deu sorte, respondi. - Não encontraram aipim na feira...
Autor: José Henrique Vaillant - Publicado em julho/2011