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19 de fev. de 2013

Uma noite longa demais

Olá, amável leitor, graciosa leitora. Outra vez, Gentil dos Anjos Flores da Purificação, seu criado. Leiam este emaranhado de espinhos.

Bom Jesus amanheceu com um céu carregado de densas nuvens. O horizonte plúmbeo compunha um cenário triste, opressor, parecendo que a Natureza queria contribuir com uma decoração característica para os sombrios acontecimentos daquele dia.
Catherine, uma amiga, quarentona simpática, grande ser humano, vinha de cabeça baixa com um lenço a enxugar o nariz. Atravessei a rua para cumprimentá-la, mas quando me aproximei, senti um calafrio.

A face irretocável do desespero! Rosto inchado, borrado pela maquiagem diluída pelas lágrimas que fluíam aos borbotões.
– Que bicho a mordeu, Catherine...? Epa..., epa..., não chore..., calma..., calma...

Praticamente arrastei-a até um banco da Praça Astolpho Lobo. Antes de sentar-se ela desabou em meu ombro num choro ainda mais convulsivo, descontrolado, balbuciando palavras desconexas. - Minha filha...

- Hein???!!! – exclamei sobressaltado, pensando na bonita jovem de 18 anos, carinhosa, simpática, um doce de criatura, como a mãe. Para mim sempre será aquela garotinha que vi crescer, considerando-a como minha própria filha.

– O que aconteceu à Tárin? -, perguntei já também meio descontrolado, adrenalina a mil.

Em meio aos soluços, as informações começaram a surgir:
- Ela..., ela..., na Internet..., mais prantos a contrariar minha aguda curiosidade.

- Internet... O que tem a Internet?, indaguei com uma calma aparente que estava longe de sentir de verdade.

- Fotos... Publicaram fotos dela...

Em segundos senti a tragédia, assimilei sua dramaticidade, e com a revolta instantânea que de mim se apoderou, encarei-a nos olhos e indaguei:
- Quem?
- O ex.
- O cara de Vitória que ela pretendia me apresentar?
- Sim
- E ela?
- Quis se matar. Um montão de comprimidos...
- Mas...
- Os médicos lavaram o estômago...
- Maldito..., balbuciei.

Depois de acalmar Catherine e levá-la para casa, onde vivia só com a menina, inteirei-me dos detalhes do ocorrido. O roteiro, embora monocórdio, repetitivo, é sempre devastador para a vítima, os familiares, os amigos. Extremamente traumático, marca a ferro e fogo as vidas de tantos que gravitam na órbita das famílias; destrói sonhos; dilapida a auto-estima; deprime, angustia e envergonha ad eternum.

Tamanha sordidez, insensibilidade, malevolência de um crápula brutal que fotografa e filma as parceiras nuas, em posições constrangedoras nesses aparelhinhos infernais, para depois compartilhar o material abjeto na Web, teria de ter uma punição. Canalhas desse naipe são criminosos covardes, imorais, aproveitadores da vulnerabilidade e ingenuidade juvenis.

Algumas semanas depois...

Como Vitória é bonita!, eu pensava caminhando no calçadão da Praia de Camburi, alguns dias depois. Sabia apenas que o safado era homofóbico (dizia sempre a Tárin que detestava gays, tinha inclusive agredido um rapaz que se engraçou com ele), e de que morava ali por perto. Não tendo o endereço, tinha esperança de encontrá-lo num dos vários bares e restaurantes da orla. Nunca nos vimos, mas portava algumas fotos recentes, não seria difícil identificá-lo.

Fiquei uma semana de atalaia, ampliando o espaço geográfico de minha busca à medida que os dias transcorriam, passando a monitorar shoppings, danceterias e outros points. Minha determinação valeu a pena. Certa tarde encontrei o bastardo comendo um lanche num desses famosos fast-foods.

Não havia dúvidas. Porte atlético, de 35 a 40 (velho para Tárin), penteado tipo Moicano, à la Neymar, (velho também para isso), exatamente como nas fotografias, acompanhado de vários adolescentes de ambos os sexos (novos relativamente ao babaca).

Pedi um lanche e sentei-me discretamente numa mesa ao lado. Mastigava devagar, todos os meus sentidos voltados para a algaravia. Um frêmito me invadia, rejubilava-me por ter renovado a diária com a locadora de automóveis.

Uns 30 minutos depois o bando se desfez. O infame dirigiu-se ao ponto de ônibus, próximo ao local onde eu havia estacionado o carro. - A sorte é minha cúmplice, pensei quando ele tomou um micro-ônibus e parti no encalço.

Desceu justamente nas imediações que percorri durante uma semana em Camburi. Parei o carro e o segui a pé. Atravessou a pista e ganhou uma via transversa. Caminhou mais uns 300 metros até chegar a um prédio de apartamentos. Entrou.

Esperei alguns minutos e dirigi-me ao prédio. Toquei a campainha da portaria. Uma voz metalizada no interfone perguntou o que eu queria.

– O rapaz que subiu agora perdeu uma carta. Poderia entregá-la?
- Passe-a por baixo da porta -, respondeu o porteiro energúmeno, sem sequer me olhar pela imponente vidraça.

Ato seguinte, já de volta ao carro, liguei para a minha correspondente em Colatina, uma balzaquiana de rara beleza, classuda, irresistivelmente sedutora: - A águia pousou, informei, recebendo um ok como resposta.

No dia seguinte devolvi o veículo à locadora, tomei um táxi e rumei para a rodoviária. Chegando em casa, liguei o computador e acessei meu gerenciador de e-mails. A mensagem irônica me falava baixinho, quase num sussurro: – Vou me apaixonar por ele; é tão loquaz..., agradável..., romântico...

Abri a página do MSN:
- Me teclou naquele mesmo dia -, digitou a parceira colatinense.
- Rápido no gatilho, não é?
- É. Disse que se surpreendeu com a forma inusitada pela qual informei meu e-mail, através de uma carta entregue na portaria por um sujeito...
- Gentileza do Gentil, he, he, he...
- ... Mas que não via motivos para não fazer contato.
- Comentou sobre as fotos?
- Claro. Justamente por elas não viu motivos para não logar...
- É..., "sua filha" é realmente um mulherão!...
- Ah, Ah, Ah. A propósito, escolha uma filha para mim menos sensual na próxima vez. Esses monumentos femininos podem ser fáceis de achar na rede...
- Não me julgue um amador, sei o que faço! Que dia vai ser o encontro dele com "sua filha"?
- Semana que vem.
- Então, inté.
- Inté. Não esqueça... www... pontocom...
- Não vejo a hora... Boa-sorte no servicinho...
- Tchau, cuide-se.

Desliguei o computador sentindo a alma leve, uma intensa sensação de paz e conforto. Admirador do profissionalismo e eficiência de minha parceira, sabia que tudo ia dar certo. - Será que a audiência vai ser boa?, era o que me perguntava, sabendo que todos os contatos do infeliz seriam devidamente avisados do show de imagens que iriam desfrutar na Internet, bem como internautas de todos os rincões do Planeta, inclusive de Bom Jesus.

Dito e feito: showzaço!!!

- E aí? -, teclou minha eficaz auxiliar de Colatina, no dia seguinte ao memorável acontecimento.
- Aquela calcinha que ele estava usando era um tanto minúscula, não acha? -, observei. - Moicano de calcinha... Mais que exótico. Escatológico!

- Ele que escolheu. Inclusive a cor do batom vermelho-sangue, a cinta-liga e os sapatos de salto.
-"Boa-noite cinderela", como sempre?
-Produto novo. Hipnotiza instantaneamente, altera radicalmente a personalidade. Melhor ainda: não permite que o cérebro registre nada do que se faz enquanto dura o efeito.
- Não vai se lembrar de nada?
- Só sentir as dores..., sabe..., lá... E que passou uma noite maravilhosa num motel com a mãe de uma adolescente que viajou às pressas para visitar o pai que estava nas últimas devido a um acidente.
- Você é demais! Obrigado.
- Às ordens.

No outro dia vi Catherine e Tárin. Nem parecia que uma tragédia havia se abatido sobre elas. Não tocamos mais no assunto, era como se nada houvesse acontecido de anormal. Apenas uma observação de Catherine, que me fez abrir um largo sorriso, mencionava discretamente o show:

- Aquele pepino era de Itu?, perguntou com uma sonora gargalhada, acrescentando: - como pôde caber?


- O vagabundo deu sorte, respondi. - Não encontraram aipim na feira...

Autor: José Henrique Vaillant - Publicado em julho/2011