Domingo, 18/2. Na pasmaceira programação da TV aberta estou sintonizado na Rede Globo, a única que nos fornece a maciça dose de alienação com a costumeira qualidade global, já que as demais nem sequer se dão a esse cuidado.
Assisto ao programa do Tom Cavalcanti, que desperdiça seu talento obrigando-se, por força da audiência, a contribuir para a derrocada da cultura brasileira já em adiantado estado de decomposição.
Qual um monótono instrumento monocórdio, os personagens que fazem a cabeça dos jovens brasileiros, nossos dirigentes no futuro, são sempre os mesmos pagodeiros, rapeiros, funkeiros, pseudos sertanejos e outras pragas que dizimam tal e qual nuvens de gafanhotos uma vasta área da inteligência musical cultivada por gênios que fazem da criatividade, do bom-gosto e do esplendor melodioso o autêntico cancioneiro brasileiro, que vive em completo ostracismo entre nós, mas coleciona Grammy's e mais Grammy's no exterior.
Por aqui vamos mesmo de Meninas e Meninos, tiriricas, tchans, catinguelês, negritudes e outras drogas que tais.
Incrível a falta de discernimento e senso de ridículo que permeiam esses arremedos de artistas, que julgam (e são incentivados pelos meios de comunicação) ser os irritantes e indolentes passinhos rítmicos (tipo dois pra lá, dois pra cá, harmonizando normalmente com pífios refrões, absolutamente pobres em criatividade) a mais revolucionária expressão artística.
Os dois ou três neurônios que compõem a caixa craniana da maioria dos nossos "artistas" campeões da mídia, trazem para nós, no entanto, algo de bom: o impulso para sonoras gargalhadas pelas coreografias ridículas, pelos esgares desconjuntados, pela sem-gracice da indumentária, pela pobreza vocabular, sobretudo pelo vazio mental.
Senhor, tendes piedade e livrais meus leitores de me julgarem um rabugento conservador!
No domingo em epígrafe, um grupo de rapazes imberbes recebia do apresentador reverências dignas a um Caetano Veloso, parlapatices entusiasmadas pela "grandiosa obra" do grupo construída em seis meses, que se resume na regravação de uma música estrangeira de extraordinário sucesso no passado e uma ou outra de somenos.
E lá posavam de artistas os briosos rapazes, arrancando gritinhos adolescentes histéricos a cada bobagem que grunhiam, quando o programa é bruscamente interrompido por aquela vinheta de mau agouro característica da informação extraordinária para comunicar-nos as mais espetaculares rebeliões ocorridas simultaneamente em São Paulo, com os bandidos fazendo mais de 7.000 reféns.
Imediatamente liguei uma coisa a outra.
Por ironia, a emissora que noticiava o pavoroso incidente é de certa forma uma das responsáveis por essa onda de violência que nos assola, porque ao conspirar para a falta de consciência da população aos problemas políticos e sociais, ao mesmo tempo em que faz apologias do culto ao corpo, ao egoísmo e à vaidade exacerbada, obsessiva, destruindo quaisquer resquícios de valores morais e espirituais, ela anestesia os princípios de solidariedade, bloqueia a capacidade de indignação pelas injustiças, inibe a impulsividade das reações frente aos desmandos, segregando os poucos que se destacam num pequeno mundo de veleidades onde a quimera e a futilidade os fazem criminosamente alheios aos milhares de brasileiros desesperançados, injustiçados.
Uma parcela daqueles só encontra solução para seus problemas na província mais obscura da personalidade, obtendo na senda do crime o que lhes é negado.
Consciente ou inconscientemente, muitos dos que desafiam a lei agem segundo uma lógica desconcertante: se políticos roubam e nada lhes acontece, por que também não podem fazê-lo?
Qual a diferença entre a droga que traficam e essa que nos empurram goela abaixo nos programas nobres da televisão, travestida de cultura de massa?
Aquela é até menos danosa, porquanto seu malefício é individual, quando muito restrito a uma parcela específica da sociedade.
Esta, ao contrário, se revela imensamente mais perversa porque injeta o potente veneno do emburrecimento e alienação coletivos, numa clara evidência de conluio com o establishment político que, obviamente, teria como a mais renitente e implacável adversária uma sociedade esclarecida, politizada e liberta da frivolidade que a faz prostrar-se na letargia e na total incapacidade de decidir com responsabilidade o seu próprio destino.
Pois é isso. Vai-se aprendendo a dançar com o Tigrão, aparando a inteligência pela rabiola, enquanto detentos nos presídios de segurança máxima (?) fazem túneis refrigerados, pintados com Suvinil e revestidos com cerâmica de primeira, ensinando que a verdadeira criatividade só pode nascer do desafio e das dificuldades.
É um erro terrível privilegiar o medíocre à custa do degredo do talento.
Autor: José Henrique Vaillant - Publicado em abril/2001