Contendo se não me engano um líquido colorido na seringa, o médico cravou a robusta e longa agulha profundamente no seu pescoço, com o doutor expressando no semblante o que já sabíamos todos os que presenciávamos a cena, eliminando a tênue esperança de um milagre que apesar do choque das evidências se cultiva nesses terríveis momentos.
O brasileiro hoje está como o Joãozinho naquele instante: nada o desperta da morte cívica, não pode reagir à desgraça política que sobre si vinha tempestuosa há décadas e décadas, mas que agora se desencadeia como uma hecatombe.
Nenhuma agulha, por maior que seja, que contenha o líquido da brasilidade, da auto-estima, da coragem em defender a honra cidadã e a dignidade da pátria é capaz de revificá-lo.
Cada golpe dos mais torpes e traiçoeiros que recebe não desperta indignação, mas injeta doses maiores de conformismo, como se as ações sádicas e criminosas fossem elixires inebriantes que alçam "Nosso Guia", como diz Elio Gaspari, aos píncaros das pesquisas eleitorais.
Que coisa terrível, meu Deus, a súcia não mais se contentar em roubar apenas as coisas materiais de um povo filho de país tão rico em recursos naturais, mas vice-campeão mundial em concentração de renda, atrás apenas de Serra Leoa!
Tomam agora também sua personalidade, sua dignidade, transformam-no em zumbi errante, em marionete que dança de gatinhas, ao bel-prazer dos ventríloquos sádicos a coreografia ridícula e infame da estratosférica inversão de valores contida na ópera dos horrores intitulada "mentiras são verdades e verdades são mentiras".
Não está aqui, senhores da "legalidade" que estão aí nos seus gabinetes suntuosos, nos seus refúgios hollywoodianos cercados de miséria e desolação por todos os lados, alguém que almeja ou instiga rupturas institucionais, badernas, confusões.
Mas devo explicar aos doutos leitores de ar desdenhoso, com as sobrancelhas a essa altura atingindo o topo de seus crânios calvos como se as mazelas não lhes dizem respeito, que sinto saudades da velha ABI, da instigante OAB, da vigorosa CNBB, dos dignos Ulysses, Tancredo e Teotônio, dos intrépidos e destemidos caras-pintadas.
Tenho inveja da determinação dos jovens franceses na defesa de suas causas, embora não aprove os métodos; sinto asco dos pseudo-intelectuais brasileiros que se banham com água Perrier paga com o resultado de suas escaramuças literárias advindas de neurônios de mão única a compor elegias à seca do Nordeste ou endeusando Chávez e Fidel.
Esses que apostaram com mais ardor no Messias que lhes instigava a massa encefálica quando ainda apeado do poder, com que desconcerto, imagino, vêem-no transmudado no mais expressivo Judas do povo.
Mas os covardes contemplam o mar de lama e corrupção e se calam, se escondem atrás de máscaras constrangidas e se permitem dizer apenas que estão tristes.
Tristes? O país está no fundo do poço, o Congresso não "congressa", o Executivo não executa, o Judiciário não "judicia" senão contra os fracos e oprimidos.
A pátria está na estupefação do assombro, agrilhoada pela corrupção e a bandalheira, refém de um grupelho, e eles se dizem tristes? Vão se catar!
Senhores e senhoras: para os abonados há a alternativa dos portos e aeroportos; para os como eu, premer estas teclas com os dedos da revolta e da indignação pela cidadania que se esvai, pelo Estado Democrático de Direito que se entorta e se decompõe.
A agulha, quando a duras penas ainda encontra quem se disponha a cravá-la nos pescoços anestesiados pela ignomínia não desperta mais um sopro de vida.
Assim, nossa fracassada geração não terá muito do que se orgulhar de seu papel na História, e um dia nossos descendentes, os que na verdade mais sofrerão pelos nossos rabos entre as pernas hoje, sentirão vergonha e repúdio de nós.
E aí só nos restarão as lágrimas, muitas ao menos sinceras, ao contrário daquelas despendidas por certo alguém que embora não gostasse dos bancos escolares recebeu de nós o diploma mais nobre, que é o de presidente da República, dizendo entre soluços falsos que o dignificaria porque não tinha o direito de errar.
Autor: José Henrique Vaillant - Publicada em março/2006