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16 de fev. de 2013

A conspiração da gentileza

- Seja bem-vindo, senhor. Em que lhe posso ser útil?, recebeu-me a sorridente balconista, com uma cara de felicidade jamais vista, como se eu, como cliente, tivesse muita importância.

Quase caí para trás. O que estaria havendo naquela loja comercial de uma cidadezinha das redondezas, um lugar onde o cliente, o freguês, o contribuinte, o paciente, o usuário e demais mantenedores da economia do lugar não costumam ser dignos de tamanha atenção, às vezes vistos até como inoportunos? 


O inusitado me abstraiu dos objetivos que ali me levavam e a falta de costume, a cultura da rispidez e da ignorância que também me vitimou fez-me sentir certa irritação com tanta simpatia. Respondi-lhe com outra pergunta:

- O que a senhorita viu de tão bom ou bonito hoje? Um pássaro amarelinho, a cara-metade com uma incomum ereção? - Sim, continuei - só pode ser algo parecido, porque se a senhorita tivesse acertado na Lotomania certamente não estaria nesta espelunca com essa cara ridícula!

Ela continuava a sorrir, impassível, nenhuma mudança nas feições ternas e serenas. Um sorriso franco, aberto, absolutamente sincero.

- O Sr. deseja ver uma de nossas coleções? Olha, acabamos de receber...

- Não quero nada. E quer saber? Esses seus dentes clarinhos, bonitinhos, aposto que não são naturais, arrematei sem nenhum pudor da mentira.

Saí dali com o mau-humor característico dos ares e dos ambientes, fortalecido em particular nas segundas-feiras, e fui a uma locadora pensando nalgum filme do Van Damme, Stalonne, Swazenegger ou mesmo do indefectível Charles Bronson, já que não fizeram ainda um do Bin Laden em ação.

Para meu desespero, o mesmo funcionário que na semana passada se prestava a um colóquio tão interessante com outra funcionária, que nem sequer me havia notado - ou fingiu que não -, dirigiu-se a mim como se eu fora um rei:

- Às ordens. Posso ajudá-lo na escolha? disse, acrescentando sem aguardar resposta - qual o estilo que o cavalheiro prefere?

- Prefiro que você me responda qual a razão desse seu sorriso idiota. Não estou lhe entendendo; ou melhor, pensa que sou “entendido”?

Abri a porta com rispidez e saí. Não, algo havia de errado. Estava me sentindo um peixe fora d´água. O que estaria acontecendo na cidade? Que onda de cortesia e delicadeza era essa?

- Só falta o dono da loja de informática estar simpático, os caras daquela antiga gráfica que mais pareciam funcionários públicos, sem o costumeiro pedantismo e intensa soberba -, pensei, arrepiado.

Peguei o meu Monza 1986 velho de guerra e segui para uma revenda da cidade, disposto a avaliar a carroça.

Lembrei-me que certa vez o vendedor (acho que o dono) lia um jornal sentado em sua mesa no escritório, e lendo e sentado ficou quando cheguei.

Quando eu disse “quero trocar esse carro” ele fez um ar entediado e o máximo de atenção que me dispensou foi levantar os olhos sem abaixar o jornal e dizer:

- Só aceitamos na troca carros do ano 1990 em diante, e voltou ao exercício educacional da leitura, sem esperar alguma pergunta ou observação replicante.

Mas agora, bolas, adentrei o pátio daquela revenda e fiquei lívido quando o mesmo cidadão, com ar afetado de reverência e mesura fez-me um sinal tipo “pode entrar que a casa é sua“, um sorriso insuportável nos lábios.

- Ano 86?, apontou para a lata velha.

- É.

- Pela idade, está em bom estado...

- Nem tanto. Poupe-se das gentilezas, só quero saber o valor desse troço. Não tenho dinheiro para comprar nenhum dos seus.

- Ora, ora... Dinheiro não é problema. O sr. tem nosso crédito -, era inacreditável a polidez.

- Não tenho e não quero crédito coisa nenhuma, está me entendendo? E por favor, pare de sorrir!

De maneira alguma o homem esmoreceu no seu sorriso. Muito pelo contrário. Sua boca estendeu-se ainda mais, e eu imaginei que por muito pouco os cantos dos lábios não se encontraram atrás do pescoço, na nuca.

- Temos aquele Corsa, aquele Pálio completo... Não, não. O senhor não é homem de carro popular. Que tal aquele Ômega, aquele...

Foi demais para mim. O sorriso tranquilo, inabalável, me fez perder decididamente a cabeça.

- Olha. Se você não recolher esse sorriso imediatamente, vou lhe enfiar a mão na cara!

Nada. Nenhuma reação. Nem um músculo se mexeu. E o sorriso continuava. Impassível, inquebrantável, intrépido. Levantei-me e dei-lhe um chute na bunda e um sopapo com a mão fechada bem na nuca.

Porcas, arruelas e parafusos se soltaram e a cara foi ao chão, separada do pescoço, desmantelada de um encaixe perfeito. O maldito ainda sorria em meio ao zumbido das faíscas dos curtos-circuitos!

Imediatamente um clarão tomou conta da cidade e uma imensa nave desceu. Uma legião de clones sorridentes e gestos delicados para ela se dirigiu e foi entrando pela porta da frente, levando o companheiro seriamente avariado.

Na porta de trás desciam atabalhoadamente, empurrando-se, rostos fechados, mal-humorados, os originais.

- Ainda bem que tudo não passou de um susto. Desmontei a conspiração da civilidade a tempo -, pensei depois, aliviado, na mesa imunda de um bar, enquanto pagava com satisfação ao garçom carrancudo, oito das seis cervejas que tomei, mais os 10%.

Autor: José Henrique Vaillant - Publicado em agosto/2002